A Escolha
 



Contos

A Escolha

Renato Neves de Almeida


O pedido de namoro fora um fiasco. Saí da casa de seu Joaquim cabisbaixo, com a autoestima em frangalhos. Quem mandou sonhar acordado, seu bocó?

Conversa de homem pra homem. Por isso, Vivi, a filha de seu Joaquim com quem eu pretendia oficializar um namoro - namorar em casa, como se dizia - não pôde participar, embora fosse parte interessada. Ela também ansiava por uma resposta afirmativa, mas, sendo moça de família, submissa à autoridade paterna, não lhe cabia decidir.

Transcrevo, aproximadamente e com as devidas correções, o que seu Joaquim, em seu linguajar inculto, salpicado de equívocos gramaticais, mas repleto de objetividade, me disse depois que respondi a todas as perguntas de seu questionário de avaliação de pretendentes:

- Não me leve a mal, meu rapaz. Gostei de você, mas tenho que pensar no que é melhor pra minha filha. Se tem boas intenções, se quer compromisso, tem que trabalhar. Qualquer trabalho honesto, não precisa ser coisa pra enricar não, que isso é muito difícil, mas que dê pra sustentar uma família. Essa coisa de só estudar não é pra gente como nós. A gente nasceu pra botar comida na mesa com o suor do rosto. E quanto antes começar, melhor.

Tomei o rumo de casa. Apesar da frustração, havia o alento de saber que, arrumando um trabalho, a permissão para o namoro seria dada. Promessa saída da boca de seu Joaquim. Assim, naquela hora, decidi pelo que julguei correto. Iria, de uma só vez, demolir a relutância do homem e eliminar o incômodo que há algum tempo me afligia: o desgosto, quase culpa, de ver meu pai mourejar sozinho como diarista nas lavouras da região, abrindo mão da contribuição que eu, na força de meus quinzes anos, praticamente homem feito, poderia dar.

Éramos só nós dois. Fazia quatro anos que minha mãe morrera. Atendendo a um pedido dela, meu pai agira de modo diferente dos demais chefes de família da região, que mal alfabetizavam os filhos, direcionando-os muito cedo para o trabalho e a ajuda no sustento da casa. Manteve-me na escola.

Acontece que estudar, naquele tempo e naquele lugar, também não era tarefa fácil. Eu precisava percorrer a pé, com chuva ou sol, uma distância de légua e meia, para enfim sentar em uma sala de aula improvisada, onde os poucos alunos, numa turma multisseriada, uniam seus esforços aos da heroica (e inesquecível!) professora Janine na árdua batalha pelo saber.

A despeito de tantas dificuldades, eu progredia. Lia e escrevia com desenvoltura. Realizava sem dificuldade operações matemáticas, terror daquele povo, que a elas dava status de mistério a poucos decifrável. Mesmo assim, a decisão estava tomada.

Quando cheguei em casa, estava escurecendo. Vi a luz de um lampião acesa. Meu pai já estava lá, o que estranhei. Ele costumava chegar um pouco mais tarde.

- Oi, filho, tava onde? Vim mais cedo hoje, trouxe uma coisa pra você.

Ele exibia uma efusão incomum. Mau momento para expor minha decisão, pensei.

- Eu tava aqui perto, na casa de uma amiga.

- Vem comigo, vem.

Pegou o lampião e saiu para o terreiro. Fui atrás.

- Ó, filho, olha só que belezura - apontava para algo apoiado na parede dos fundos.

- Pai, o senhor comprou uma bicicleta pra mim? Deve ter sido caro.

- Nada! Era do Zé Pedro. Dei um leitãozinho e o resto eu pago aos poucos. Cachaceiro que nem ele tem que andar a pé. Dia desses caiu feio da bicicleta, no outro esqueceu ela no boteco.

Riu como há muito tempo eu não o via fazer.

- Chega de andar feito um condenado pra ir pra escola. Não vai dar pra fugir da chuva, claro, que isso não tem teto. Aí só um carro, né, filho? Mas é uma coisa de cada vez.

E ria, ria com gosto. Sua felicidade contrapunha-se ao constrangimento que me calava.

- Bora, filho, sobe aí. Exprimenta.

- Pai, eu não sei andar de bicicleta.

- Pois vai aprender, ora, vai aprender.

Não tive alternativa. Montei na bicicleta, enquanto meu pai, depois de pendurar o lampião num galho de árvore, a segurava pelo selim, me ajudando a manter o equilíbrio. Incentivava-me como a um peão que tenta domar cavalo bravo, ria com o orgulho de pai que dá ao filho um presente inesquecível.

Desejo de coração que seu Joaquim tenha conseguido um bom marido para Vivi.


Renato Almeida nasceu em Belém do Pará, mas reside há mais de quatro décadas no estado do Rio de Janeiro. Matemático, músico e profissional de TI, começou a escrever em 2020, levando adiante um projeto há tempos concebido. Como primeiro passo, inscreveu-se no Curso Online de Formação de Escritores, da Metamoforse, e logo teve um de seus contos selecionados para a coletânea A VIDA AQUI NÃO É FÁCIL, da editora. De lá para cá tem produzido assiduamente, sempre atento à busca pelo domínio e aperfeiçoamento das técnicas literárias, a fim de pô-las a serviço de seus textos. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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